Como criar um tiranete - Texto completo.



                A verdade sou eu. Quando o outro disse “ O Estado sou eu”, disse a mesma coisa. Só que meteu a polícia para não haver dúvidas e outros a dizê-lo também.

Vergílio Ferreira, PENSAR.

Como se cria um Tiranete

Dizia há dias um amigo: “um tiranete não nasce, aparece.”
- Coisa estranha, respondi. Para aparecer o homúnculo teve que nascer. E se nasceu é porque alguém o criou.
- E depois apareceu.
- Sim, mas, apareceu porque nasceu, foi-se criando, ou melhor criaram-no, o que é que te parece?!
- Um tiranete não nasce sozinho, digo-te eu.
- Não sei se é bem assim, a maior parte das pessoas nascem sozinhas.
- Mas o tirano não nasce, A-PA-RE-CE, raios, confia em mim.
- Na verdade, se os tiranos nascem ou aparecem, nem me interessa muito, até conheço uma receita para a criação de tiranetes. Aprendi-a algures num velho livro de receitas do meu avô.
- Ah, e que livro é esse?!
- “Escuta com atenção o que um velho tem para te dizer”.
- Mas tu ainda não és velho?
- Não sou eu, pá, é o nome do livro do meu avô.
- Nunca ouvi falar em tal livro.
- Pois não, era só do meu avô, melhor, era o meu avô. Nunca ouviste dizer que quando morre um velho arde uma biblioteca.
- O que eu sei é que, com esta conversa, cada vez entendo menos de tiranos. O que eu quero é que eles vão …
- Não digas mais, não me estragues o texto com linguagem obscena, já me basta o assunto da nossa conversa, é melhor não entrarmos por aí.
 - E se passasses à receita.
- Nesse caso, ouve bem, “escuta com atenção o que um velho tem para te dizer.”
Aviso prévio:
Esta receita tem origem nos tempos mais recônditos da História Humana, quando o homem ainda não era bem um homem. Trata de loucura, mete cães, gatos, donos dos cães e dos gatos e Deus, com mais precisão, anda por aqui a ideia de Deus. Precisa de muita bajulação, subserviência e medo.
- É uma receita ou um filme de terror?
- Quando lidamos com esta canalha, sem dúvida, a “coisa”, mais parece um filme de terror, vamos então ao que interessa:
Ingredientes:
- Um sujeito (ou sujeita) meio louco, meio doente, mentalmente senil, incapaz de pensar nos outros e que vive na constante contemplação do próprio umbigo. Confunde-se com os cargos que ocupa, utilizando todas as estratégias possíveis e imaginárias para oprimir quem o rodeia. A instituição é ele, nele tudo se confunde e é incapaz de discernir o bem do mal. Usa os dotes de actor para se travestir de camaleão e estar sempre, cada vez mais, de acordo com os poderes reinantes, independentemente, da cor ou ideologia. O oportunismo é a sua religião. Deus, se acaso existe, é a toda-poderosa sua pessoa. Normalmente, rodeia-se de moluscos sem carácter que lhe obedecem cegamente. A sua fala parece rosna de cão tinhoso e vive enclausurado no seu complexo de gato fedorento, aliás, o complexo de gato confere-lhe a aura e o inapropriado sentimento de rei sol. Resumindo, o sujeito ou sujeita dorme com Satanás, mas considera-se um Deus. Diga-se de passagem que, dormir com o inimigo até nem seria muito original, nem grande mal viria ao mundo, o pior é que o amador de tanto amar transformou-se na coisa amada.
- Várias terrinas, até mesmo algumas panelas de bajulação. Refira-se a propósito que, bajulação em doses excessivas fermenta e fermentação é condição necessária e suficiente para revelar a besta exasperada em todo o seu esplendor, mais parecendo um pavão de crista empinada.
- Um alargado número de “gentes” dispostas a obedecer, sem esboçar minimamente desacordo ou pensamento próprio.
- Doses elevadas de medo, muito medo e ainda mais medo.
- Cobardia e falta de carácter quanto baste.

Preparação:
Misture todos estes ingredientes num espaço ou organização a seu gosto (ou para seu desgosto, vá-se lá saber?!) até pode ser uma unidade orgânica. Deixe ao lume durante algum tempo, mas cuidado, não deixe demasiado tempo, pois, pode correr o perigo de o tiranete se agarrar demasiado ao tacho e, nestes casos, só com muita persistência e muita luta conseguirá remover a pestilência.


- Isso tudo está muito certo, mas o que não percebi, foi essa história do complexo de gato.
- Na verdade, só quando souberes o que distingue os gatos dos cães compreenderás verdadeiramente o que digo.
- Agora é que fiquei “com a pulga atrás da orelha”, desculpa o dito, mas como falamos de cães e gatos parece-me apropriado, mas, afinal, que queres dizer com isso?
- Meu caro e ilustre amigo, fica sabendo que o que distingue os gatos dos cães é Deus, em concreto a atitude perante o divino, e já vais perceber porquê:
- “ O cão, o dono leva-o a passear, leva-o ao veterinário, alimenta-o, enche-o-de festas, brinca com ele, etc., etc.. E o canídeo olha para o dono e pensa: “Este deve ser um Deus”. A partir daí obedece-lhe quase cegamente e segue-o por toda a parte. Não é por acaso que se diz que: “o cão é o melhor amigo do homem”, ou muitas vezes ouvimos falar em “Submissão canina.”
            O gato, o dono leva-o ao veterinário, dá-lhe comida, brinca com ele, faz-lhe festas, mima-o a toda a hora, coloca-o ao colo se for caso disso, cede-lhe o lugar no sofá em frente à televisão, deixa que ele se torne o rei e senhor da casa e o gato mira-se, lambe-se todo e mia, autoritariamente, enquanto pensa: “ Devo ser um Deus”.
- Mas os gatos podem ser muito mais que isso…
- Tens razão, é verdade, os gatos podem ser símbolo de resistência, de independência e liberdade, mas isso é outra raça de gatos, aquela de que te falo hoje, é a dos gatos tiranetes, maus e fedorentos por natureza, muitas vezes só com força de tigre os conseguiremos vencer. Por isso, meu bom amigo, sempre que vislumbrares, ou até te cruzares com um espécimen destes transforma-te em tigre, deixa fluir o teu lado felino e sem embarcares em “cantos de sereia”, espera serenamente o momento de lhe lançares as garras e destruíres a garimpa fedorenta da besta. Mas cuidado, muito cuidado, mesmo depois de morto é necessário que enterres os restos numa cova funda e longe, muito longe do Espaço Democrático, pois o seu cheiro de hiena fascista pode não ser perceptível por todos e dar azo a confusão.
- E, agora, é tempo de voltarmos ao início da nossa conversa: O Tiranete nasce ou aparece?
- Os leitores que respondam, por mim, já nem sei que te diga…a propósito destas coisas, fiquei com outra dúvida: Quem faz a escultura, o barro ou o artista?
- Pensa, meu amigo, pensa… é grátis.

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